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A coragem de ser suficiente

Foto do escritor: Magali GomesMagali Gomes

Atualizado: 3 de abr. de 2024

Chegamos ao último artigo do dossiê "Na média e seus (re) significados", publicado em março de 2023 pela Revista Coaching Brasil e está disponível na íntegra para assinantes da Revista.


Coordenado pela Eighter Michele Crevelaro, esse dossiê apresenta um olhar para o indivíduo, para a organização e para a sociedade, reunindo diferentes formas de escrita e reflexões acerca do que é estar na média.


Aqui no blog da Eight, você também pode ler os artigos:



"A coragem de ser suficiente" é o tema do artigo escrito pela Eighter Magali Lopes que você confere a seguir.



“O importante não é estar aqui ou ali, mas ser. E ser é uma ciência delicada, feita de pequenas observações do cotidiano, dentro e fora da gente”.

Carlos Drummond de Andrade


2023 já começou cheio de surpresas. Logo nos primeiros dias do ano, Jacinda Ardern, a então primeira-ministra da Nova Zelândia, renunciou ao cargo mais importante do país.


Alegou, aos 42 anos, não ter mais combustível para um novo mandato. “Estaria prestando um péssimo serviço à Nova Zelândia se continuasse no cargo", disse.


Há quem tenha dito que ela jogou a toalha para não perder as eleições; há quem tenha encontrado, em mais essa atitude dela, uma fonte de inspiração, por levantar uma reflexão sobre suficiência na hipermodernidade.


Ora, nesse mundo acelerado e líquido, somos doutrinados a querer sempre mais – mais produtos, mais dinheiro, mais compromissos, mais diversão, mais poder, mais sucesso.


Vivemos, como diria o filósofo Gilles Lipovetsky, uma cultura de excesso, que teme a remota possibilidade do vazio e desconhece a suficiência.


Recordo-me que, durante o período que morei na Austrália, uma colega fez a seguinte análise sobre os jovens locais: “essa geração rejeita cargos de liderança porque não quer incômodo. Prefere viver satisfeita com o que já têm, para não sacrificar a vida pessoal.”


Para mim, que tinha um plano audacioso de carreira, aquela conversa gerou estranheza. Cadê a ambição dos australianos? Que futuro essa nação pode ter sem pessoas com o tal do “sonho grande”?


Com o tempo, percebi que testemunhava uma contracultura e há cada vez mais evidências de que não há uma forma única de felicidade ou sucesso. Mais do que isso, o modelo tradicional mostra-se esgotado e esgotante.


A “fome” desmedida por mais pode gerar desde "inconsistências contábeis", que colocam em risco milhares de empregos diretos e indiretos, à famigerada sociedade do cansaço do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, para quem “o indivíduo se explora e acredita que isso é realização.


Exagero?


Parece-me que não. Segundo a Associação Internacional de Gerenciamento de Estresse (Isma), o Brasil é o segundo país com mais casos de burnout no mundo. O esgotamento não é mimimi. Virou estatística nas nossas organizações, impacta nossas famílias e se tornou doença ocupacional pela Organização Mundial de Saúde.

Pare para pensar: essa ânsia por mais rege até os nossos momentos de lazer. Durante a Copa do Mundo, por exemplo, o Brasil ganhava com folga da Coreia quando Tite resolveu trocar alguns titulares.


Para mim, ele estava certo, ao dar chance aos reservas e experimentar outras configurações de time. Para o meu marido, a inevitável quebra no jogo causou revolta.


Na visão dele, o Brasil tinha que aumentar o placar. Estacionar, no esporte, na carreira ou na vida, é, na cultura vigente, um pecado capital. Afinal, é Copa do mundo!


É nesse contexto que a decisão de Jacinda ganha relevância, pois rompe a lógica até então estabelecida e tão pouco questionada por nós. Deixamo-nos adoecer por medo de dizer não, de ser criticado, de ser demitido, de ser excluído. Para fazer parte, deixamos de pertencer a nós mesmos. Não é louco isso?


Jacinda disse ter aproveitado as férias de verão para considerar o seu presente e o seu futuro. Para ser suficiente é preciso fazer esse mergulho interno, descobrir o que é satisfatório e o que nos faz feliz.


Não é um lugar fácil de se achar quando somos inundados de estímulos e influências externas. É preciso muito autoconhecimento, além do entendimento de que a nossa realização, assim como a vida, não é fixa. Ela pode transitar de acordo com o momento.


Essa consciência nos impede de viver constantemente na ausência, isto é, em um lugar de falta, que nos rouba o presente e causa sofrimento, pois gera perfeccionismo, incômodo crônico e adoecimento.

Jacinda fez, portanto, o que poucos fazem – disse não ao poder e ao prestígio que conquistou bem além do seu território. Ela se colocou em um lugar de extrema vulnerabilidade – assumiu publicamente uma escolha e a sustentou diante de tudo e de todos, enfrentando os mais diversos julgamentos, questionamentos, críticas e claro, impactos.


“Em um mundo cheio de problemas complexos e possibilidades intermináveis, precisamos de líderes corajosos, de uma cultura de coragem. E só chegaremos lá quando aceitarmos e usarmos nossa vulnerabilidade”, explicou Brené Brown em uma entrevista.

Para a pesquisadora da Universidade de Houston, é impossível descolar a vulnerabilidade da incerteza, do risco e da exposição emocional. Um depende do outro, um está conectado ao outro. Quem se arrisca, quem convive com a incerteza, quem tem coragem de fazer escolhas, movimenta-se no tabuleiro de xadrez e está sempre exposto a fazer ou tomar um xeque-mate.


Nosso cérebro reptiliano (para ser simplista) não nos ajuda a tomar as rédeas da nossa vida (se é que algum dia isso seria possível), pois nos faz concluir que é mais fácil fugir ou se calar a considerar hipóteses e fazer escolhas alinhadas aos nossos valores, sonhos e vontades.


Nossas empresas estão organizadas para promover um crescimento contínuo – não só do negócio, mas também das carreiras. O desenvolvimento profissional é considerado uma curva ascendente – jamais horizontal, como se esta não pudesse agregar valor e gerar realização.


Os planos de sucessão correm, muitas vezes, à revelia dos escolhidos. É uma decisão imposta, raramente compartilhada. Entre líderes e liderados, perguntas deixam de ser feitas para não causar incômodos e não questionar o status quo.


Nunca me esqueci da história de que, na investigação do naufrágio do Titanic, descobriu-se que alguns especialistas estavam inseguros em relação à estrutura e segurança do navio. Contudo, nenhum deles teve coragem de dizer algo. Preferiram se calar a pagarem de todos. Quantas vezes fazemos isso dentro dos nossos times e das nossas famílias?

Em "Empresas feitas para vencer", Jim Collins ressalta que uma empresa excepcional e sustentável tem líderes com fome de perguntas para entender cenários e situações; coragem para correr riscos e tomar decisões não-convencionais; humildade para admitir erros e fracassos, entre outras características.


É preciso coordenar coração e cérebro e se lançar ao que é conhecido ou desejado, às vezes, somente por nós, no canto mais fundo da nossa alma.


O que Jacinda fez, logo nos primeiros dias do ano, foi nos recordar de que a lógica do mundo é... ilógica!


Não há uma única resposta, tampouco uma só solução para dilemas e desafios individuais e coletivos. Coaches e líderes precisam se lembrar tanto das características desse mundo líquido, quanto da essência da natureza humana.


Promover autoconhecimento não é papo de psicólogo, muito menos de autoajuda. A autoconsciência ajuda as pessoas tanto a surfar as dualidades, dicotomias e polaridades do mundo atual, quanto a fazer escolhas necessárias, ainda que impopulares ou nada convencionais. Com clareza e verdade, abrimo-nos ao diálogo e às conexões. Estudos demonstram que nos tornamos até mais criativos, colaborativos e, veja só, realizados.


É por isso que, para mim, a coragem de ser suficiente é um convite para a mudança muito além das nossas carreiras e vidas.


Quando o indivíduo se transforma, o ecossistema se altera. Se nossas instituições, organizações e comunidades são hoje possíveis lugares de caos e desarmonia, temos aí a chance de virar o jogo.


Afinal, como o poeta Carlos Drummond de Andrade, “o importante não é estar aqui ou ali, mas ser. E ser é uma ciência delicada, feita de pequenas observações do cotidiano, dentro e fora da gente.”



Magali Lopes, Coach PCC, Mediadora de Conflitos, Facilitadora de diálogos e

Senior Action Learning Coach (SALC)

Apoiando na (re)descoberta das características essenciais da natureza humana que transformam

magali@8dialogos.com.br


Fontes:


¹ “Por que Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia, renunciou”. BBC, 19 de janeiro de 2023. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64329138. Último Acesso: 31/01/2023.

² “Byung-Chul Han: “Hoje o indivíduo se explora e acredita que isso é realização”. El Pais, 7 de fevereiro de 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/07/cultura/1517989873_086219.html. Último Acesso: 31/01/2023.


³ https://valor.globo.com/carreira/noticia/2023/01/26/burnout-ganha-maior-visibilidade.ghtml


⁴ “Vulnerável, sim”. TPM, 03 de setembro de 2009. Disponível em: https://revistatrip.uol.com.br/tpm/brene-brown-do-ted-o-poder-da-vulnerabilidade-fala-da-importancia-de-se-reconhecer-imperfeito. Último Acesso: 28/01/2021.


⁵ COLLINS, Jim. Empresas Feitas para Vencer - Por que algumas empresas alcançam a excelência... e outras não. Rio de Janeiro: Altabooks, 2018.



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