Duas pessoas estão sentadas numa sala de reunião. A sala é pequena, tem uma mesa redonda disposta no centro e a porta de acesso é de vidro. O clima está tenso.
Uma pessoa diz para a outra: “Olha, te chamei aqui para tentarmos chegar a um acordo. A situação entre nós está muito ruim e eu realmente não gostaria que fosse assim. Sei que não há espaço para resgatarmos o que um dia tivemos e não acredito que encontrar culpados ou esmiuçar o passado vá nos ajudar neste momento. Já tentamos fazer isto e a situação só piorou. Se pudermos então passar uma régua no que vivemos e combinarmos o que cada um de nós precisa para que possamos minimamente seguir trabalhando juntos...”
Neste momento, a outra pessoa se levanta exaltada e diz, gritando: “Passar uma borracha? Você acha mesmo que podemos apagar tudo o que aconteceu?”. A pessoa que seguia sentada, apesar de ter se assustado com a reação da outra pessoa, ainda conseguiu dizer “Você tem razão... Por isso eu usei a expressão “passar uma régua”, simbolizando um divisor, um recomeço. Concordo com você que não é possível apagarmos, mas...”
A frase nem foi concluída e a pessoa que estava exaltada sai bruscamente da sala, falando palavras agressivas. Ao sair, bate a porta de vidro com toda a força, fazendo um barulho ensurdecedor. As pessoas que trabalhavam no andar notaram que algo estava fora do usual.
Para a pessoa que permaneceu na sala o tempo parou. Seu corpo tremia inteiro, seu rosto ficou quente. Mil pensamentos vieram à sua mente de forma desordenada. A vontade era de soltar um grito. O sentimento era um misto de raiva e frustração. O choro veio sem que ela pudesse fazer nada para controlá-lo. Ela ainda ficou uns bons minutos na sala antes de sair e seguir com os seus afazeres.
Esta cena que acabei de descrever realmente aconteceu em uma organização e estas duas pessoas não se reconciliaram. Mas a pergunta que ficou para mim, quando soube desta história, era: “Será que esta história poderia ter acabado de outra forma?”
Quando decidi estudar o assunto e me tornar mediadora de conflitos entendi que possivelmente esta história poderia ter tido outro final.
Conflitos surgem das diferenças ou das divergências. Surgem quando misturamos julgamentos e interpretações aos fatos de uma situação. Quando entramos em disputas de poder, controle e competição para preservar nossa identidade ou autoestima. Quando nos atemos a posições rígidas e a verdades absolutas. No mundo corporativo, é comum identificar que conflitos surgem por problemas na comunicação.
Desde os primórdios da nossa existência os conflitos estão presentes. Porém, a possibilidade de perceber o conflito como algo positivo é mais recente. Em culturas como a nossa, por exemplo, o conflito era (e talvez ainda seja) visto como algo não tão bom, que se possível deve ser evitado. Mas ele também pode ser o ponto de inflexão para uma relação ou situação, ou seja, o ponto de virada que possibilitará o crescimento da pessoa, da relação ou da própria organização.
Mas em que medida o conflito é saudável e em que medida ele começa a corroer as relações? Será que somos capazes de ter este discernimento?
De início, ajuda muito se compreendermos que o conflito é algo inerente à nossa existência, ou seja, se encararmos o conflito como um fenômeno natural. Assim, eliminamos o impulso de tentar neutralizá-lo ou evitá-lo e, no lugar, concentramos nossos esforços para compreendê-lo. Afinal de contas, é certo que as diferenças estarão sempre presentes nas relações. O ponto é entender que estas mesmas diferenças podem fortalecer ou destruir a relação, dependendo de como lidamos com elas.
Friedrich Glasl, escritor e professor austríaco, PhD em prevenção de conflitos, concebeu, a partir da sua experiência, os 9 estágios na escalação de um conflito.
À medida que o conflito evolui, os comportamentos vão se tornando mais primitivos e adotando formas irracionais de disputa. Não é à toa que os estágios são representados na forma de uma escada decrescente e indo de estágios onde ainda pode se esperar que os resultados sejam benéficos para as pessoas envolvidas, a estágios onde inevitavelmente todos os envolvidos sairão duramente prejudicados.
Para cada um destes estágios o autor descreve quais são os comportamentos adotados pelas pessoas que vão de tensões e confronto de opiniões a ameaças, confrontação e destruição do outro, ainda que seja ao preço da própria autodestruição. Se você viu o filme argentino “Relatos Selvagens” pode conferir a que Friedrich Glasl se refere.
Na prática, conseguimos identificar alguns sinais que nos avisam que o conflito está escalando ou, numa linguagem mais coloquial, “esquentando”. Por exemplo, quando a tensão começa a surgir em meio a um diálogo e os pontos de vista começam a se chocar, estamos no primeiro estágio da escalada do conflito, segundo Glasl.
Mas é no segundo estágio que a polarização ocorre, o tom de voz sobe e as emoções ficam em alta. Neste momento, há um “aumento da pressão” para que a opinião de um prevaleça sobre o outro, a comunicação se torna mais violenta, as nuances desaparecem e tudo o que as pessoas conseguem enxergar é o preto e o branco. Aqui é comum vermos as pessoas presas ao “ter razão” ou “apontar culpados”, numa tentativa de se defenderem dos ataques que está sofrendo.
No terceiro estágio as palavras dão lugar às ações e, junto com elas, vem o pessimismo e a desconfiança. Neste momento a pessoa se fechou em seu grupo, a simpatia que havia por “eles” desaparece e a competição é maior que a colaboração.
Porém, mais do que explicar quais são os comportamentos em cada estágio da escalada¹, que como você já percebeu só vão ficando mais violentos, quero que você saiba que há sinais menos óbvios e mais sutis de que a situação também está caminhando para a escalada do conflito.
São sinais mais difíceis de serem identificados pois eles não “esquentam” a situação. Ao contrário, eles “esfriam” e não parecem causar qualquer problema.
Vamos ver alguns exemplos?
Imagine que líderes estão discutindo algo importante e todos estão apresentando seus pontos e visões sobre o assunto. Um dos líderes parece concordar com todos e assim que a reunião termina, ele sai convencido de que não fará nada do que foi combinado. E para não “dar tanto na cara” e justificar a sua não ação, ele inventa desculpas ou aponta outras questões que estariam dificultando a situação. Estamos falando de dissimulação e descaso que podem ou não virem acompanhados da ironia, um recurso utilizado para expressar o descontentamento com alguma decisão ou alguém.
Outro sinal comum é o falar algo “de alguém” e não algo “para alguém”, ou seja, compartilhar com outras pessoas suas insatisfações ou sua opinião em relação a uma terceira pessoa, que obviamente não está presente. Neste caso, há um claro sinal de que a pessoa está descontente com algo, mas ela opta por se esquivar da conversa difícil que poderia transformar a situação.
Por fim, você já ouviu frases como “Aqui as coisas são assim... Nada vai mudar!” ou “Para quê dar a minha opinião?”. O famoso “deixa prá lá”? Estas são frases que revelam que a pessoa já não acredita mais naquilo ou naquela pessoa e não considera que vale a pena investir mais energia na situação. É quando a pessoa escolhe se omitir, se retirar da relação.
Você talvez esteja pensando se já viu alguém tendo estas atitudes. Ou mesmo, deve estar se perguntando se você mesmo já agiu assim. Eu, que estive por 20 anos no mundo corporativo, posso dizer que vi mais sinais sutis presentes nas organizações do que os mais “quentes”, descritos na escada de Glasl. E, sendo sincera com você, devo reconhecer que eu mesma já me comportei assim em algum momento.
É comum não darmos a devida atenção ou atribuirmos a devida importância a estes tipos de sinais. Eles parecem inofensivos, mas no médio ou longo prazo seguramente sofreremos o impacto do esfriamento nas relações.
Pessoas se sentirão menos motivadas e menos engajadas. Times se fecharão em silos. Líderes se tornarão menos inspiradores. As soluções serão menos criativas e, em última instância, a cultura da empresa será negativamente impactada.
Mas calma! Acabamos de olhar para vários sinais que indicam que o conflito está escalando. Da mesma forma, há muito o que fazer para lidarmos de forma positiva com as situações difíceis. Se estamos conscientes do que acontece no nosso mundo interior, é mais fácil reconhecermos o que está acontecendo no mundo interior da outra pessoa.
Não sei se você já ouviu falar sobre a Comunicação Não Violenta ou sobre os fundamentos de uma comunicação consciente. Passa por buscarmos a autoconexão, de modo a reconhecermos o que está vivo em nós, ou seja, nossos sentimentos e necessidades. Para então, sermos capazes de nos responsabilizarmos pelo que é importante para nós, compreendermos o que não está presente naquela situação e formularmos pedidos claros para nós mesmos ou para o outro. E sermos também capazes de nos expressarmos com o máximo de verdade e o máximo de cuidado.
Por fim, a situação que descrevi no início deste texto aconteceu comigo. Eu era a pessoa sentada na sala que na tentativa de resgatar uma relação acabou por destruí-la. Hoje reconheço que muitos destes sinais estiveram presentes sem que eu desse importância a eles.
Talvez eu estivesse muito orientada a fazer com que “as coisas dessem certo” e os resultados fossem atingidos. Da mesma forma, hoje tenho certeza de que o final desta história possivelmente seria diferente. Menos pelo que a outra pessoa faria ou deixaria de fazer, mas porque eu me comportaria com mais consciência e presença para lidar com o que estava vivo na nossa relação.
¹ Se você quiser ver uma breve explicação, em inglês, sobre os 9 estágios da escalada do conflito segundo Friedrich Glasl, digite “Wikipedia Friedrich Glasl’s model of conflict” na ferramenta de busca de sua preferência.
Valeska Scartezini, integrante da Eight, é uma aquariana comunicativa e organizada que ama pedalar, estar ao ar livre e junto a natureza. Apaixonada por autoconhecimento desde sempre, já andou pelo mundo do marketing e agora está descobrindo profissionalmente o universo do desenvolvimento humano.
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