Por Cristiane Vicchiato
Antes de contar a minha história, faço um convite para vocês lerem a seguinte frase “MULHER INDEPENDENTE É PROMOVIDA E PEDE DEMISSÃO DE UMA DAS MELHORES EMPRESAS PARA SE TRABALHAR NO PAÍS”. Agora imaginem a série de julgamentos que existem por trás dessa afirmação. Antes de vocês refletirem, trago aqui a minha própria lista:
Não acredito que ela estudou tanto para sair sem nada em vista.
Depois de quase 15 anos, ela resolve sair por conta própria? Mas acabou de ser promovida?
Tanto esforço para passar no programa de trainees e de repente acaba assim?
Ela vai depender do marido?
Qual exemplo ela vai passar para a sua filha mulher?
Vai virar dona de casa?
E o plano de saúde?
Essa lista pode até ser maior, e acreditem, foram longos dois anos antes do dia 02/04/2014, o dia em que pedi demissão.
Na época, dizia para todos e para mim mesma, como que num discurso planejado, decorado para que eu não engasgasse quando me olhavam com cara de espanto pelo fato de eu ter saído da empresa dos sonhos, “Eu quero resgatar a relação com a minha filha (na época com 4 anos), quero cuidar da minha saúde e quero fazer uma formação longa e gostaria de ter tempo para me dedicar”.
Nada disso era mentira, mas na realidade, a única certeza que eu tinha era que eu não queria estar mais onde estava, não me via mais trabalhando naquele formato, naquela gincana diária.
Foram anos de caminhada para chegar até aqui, sempre acompanhei o esforço dos meus pais para darem a mim e a minha irmã uma educação de qualidade numa escola particular, a luta constante da minha mãe para que nós fôssemos independentes e tivéssemos uma carreira de sucesso. Olho para trás e com muita gratidão aos meus pais reconheço cada passo que eles deram para o nosso desenvolvimento. Olho para o agora e me sinto mais apropriada para falar de desenvolvimento para as minhas filhas.
Comecei a trabalhar dando aulas de inglês numa escola do bairro, no início a ideia era ter o meu próprio dinheiro, mas que logo se transformou numa necessidade literalmente contada para que eu pudesse me sustentar na faculdade, pagando a mensalidade, materiais, alimentação, etc. Logo me vi fazendo estágio em multinacionais e por aí foi. Na última empresa que trabalhei por quase quinze anos, comecei no programa de trainees (com a mentalidade de quem queria conquistar o mundo com o exército vermelho, nada podia me deter!). Passei por diversas áreas, de finanças a RH, sempre com foco em planejamento, estratégia, projetos e processos, o que me deu a chance de conhecer o modus operandi de uma grande organização de A à Z. Foi essa possibilidade de conhecer as diferentes áreas que me despertou a curiosidade para o desenvolvimento humano.
Confesso que quando recebi o convite para integrar a equipe de recursos humanos, fiquei chocada, logo eu, uma moça dos números e planilhas de excel, vou fazer o que na área de RH? Mas foi exatamente esse convite que me deu a oportunidade de enxergar a riqueza no desenvolvimento das pessoas, o potencial que cada um tem dentro de si e o quanto a empresa estava disposta a investir nesse ponto. Por mais que eu tentasse me convencer de que era uma pessoa de números e planilhas, cada vez mais me via apaixonada por ver e pensar o desenvolvimento das pessoas e da organização, e na verdade, os outros também começaram a me ver dessa forma. Comecei a ser chamada para almoços e cafés, ouvir confidências, dilemas e planos de pessoas que nem eram tão próximas assim, mas que depositaram sua confiança em mim. Posso dizer que assim começou meu processo de transição de carreira, sem que eu me desse conta na época, meus olhos ainda brilhavam para o meu trabalho e a minha empresa, mas eles passaram a ter um sentido e uma busca por resultados diferentes. Depois disso, fui melhor gestora de pessoas, mas ainda não de mim mesma.
E assim construí relacionamentos e uma vasta experiência no mundo corporativo. Antes da última empresa em que trabalhei, tive outras experiências mais rápidas, todas em gigantes multinacionais, uma alemã e uma americana, cada uma delas me fez crescer profissionalmente, literalmente conhecer o mundo e pessoas incríveis, amadurecer, criar independência, eram os soldados do exército vermelho em ação na sua melhor performance. Tive experiências ruins também claro, frustrações, decepções, perdas, todas elas vividas com sua merecida intensidade. De verdade, me sinto muito grata por todos esses aprendizados.
Meu processo de virada começou em torno de dois anos antes do “grande dia”.
Sentia que precisava mudar algo, mas não sabia exatamente o que.
Fui em busca de autoconhecimento num processo de terapia (já havia passado por terapia antes, mas com outros focos e questões), queria entender o que acontecia dentro de mim e como que numa visão punitiva, por que eu não era mais grata ao emprego que eu tinha. Foram longos dois anos de muitas descobertas, dores e uma coragem que até hoje eu não sei de onde veio (talvez dos soldados vermelhos!), pois tive que pôr a prova todas as minhas crenças, meu histórico de independência, meu medo da instabilidade, vários preconceitos e uma preocupação com o valor que eu teria no futuro para mim mesma e minha família, mas principalmente para mim.
Hoje, com olhos mais calmos, vejo essa fase como um processo de aprendizagem e autoconhecimento, na época, me via desesperada, presa num ideal de carreira e de sucesso, preocupada em passar a melhor imagem de mim para a minha filha e apavorada em saber que perderia a minha independência financeira.
Talvez hoje seja fácil falar dessa história, até porque seu final é feliz.
Tive ajuda financeira e emocional, me preparei para uma nova carreira e tenho um trabalho que me faz brilhar os olhos cada vez que eu me sento com um cliente ou com meus colegas.
Nos últimos sete anos (nossa já vai fazer SETE anos!) parei para me recompor, me conhecer, saber onde batia sol na minha casa, ter mais uma filha, me aproximar dos meus pais, resgatar hábitos e esportes antigos como o de fazer tricô e jogar vôlei.
Pode ser que para alguns não seja tão fácil assim, tanto emocionalmente como financeiramente, pode levar mais ou menos tempo e até mais ou menos dinheiro para se fazer uma transição, ou pode até ser que ela aconteça de forma arbitrária por decisão da empresa ou na chegada da aposentadoria, depende da situação de cada um, o importante é ter a consciência de que passar por esse processo é algo que vai exigir coragem, resiliência e muito autoconhecimento. Ah, e pode parecer impossível como era para mim com a mentalidade dos soldados vermelhos, mas dá para pedir e aceitar ajuda, seja ela profissional, seja de um amigo próximo, da família, etc. Essa ajuda vem para te ensinar que você não está sozinho.
E para finalizar, peço licença para uma pausa para agradecimentos a pessoas especiais, e assim como eu fiz aqui, os convido que façam as suas próprias listas, pois esse é o pilar que vai te sustentar durante a travessia da transição, suas relações.
Essa jornada não seria possível sem o amor do meu marido, Felipe, do crescimento da minha filha Valentina, da chegada da Giovanna que me fez renascer e do apoio incondicional sempre dos meus pais dona Leila e seu Barbosa, dos meus amigos e parceiros da Eight∞, dos meus mestres do EcoSocial e da minha amiga de todas as horas (mesmo!) Jerusa, que eu tive a sorte de reencontrar no caminho das nossas filhas. A todas essas pessoas, muito obrigada!
Cristiane Vicchiato, 41 anos, casada com o Felipe, mãe da Valentina e da Giovanna, acredita no poder do diálogo e das relações como forma de desenvolvimento. Administradora pela FAAP com MBA em Gestão de Negócios pelo Insper SP, tem mais de 15 anos de experiência corporativa e em 2014 passou pelo seu processo de transição de carreira. Hoje trabalha em rede na Eight, com desenvolvimento de pessoas e organizações, e é sócia da Vinculab um laboratório de experiências para cuidar do vínculo entre as relações.
Leia outro artigo da Cris sobre o assunto:
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