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  • Foto do escritorValeska

O conflito bate à sua porta. E agora?


Era uma vez alguns meninos jogando bola na rua, em frente a casa de uma senhora apelidada por todos como a “bruxa da rua”. As mães destes meninos, desempregadas, conversavam na calçada. A senhora, apelidada de “bruxa da rua”, era reclusa e amava suas plantas e seus gatos, em especial o Felini.

Um belo dia a bola escapou e machucou o gato Felini. A senhora saiu de casa aos berros, ameaçando matar aquelas crianças que tiravam o sossego dela e agora haviam machucado seu querido gato. As mães ouviram a confusão e foram para cima da senhora em defesa de seus filhos.

Se não fosse pelo que conheci recentemente, com o nome de Mediação Comunitária, esta história tinha tudo para ter acabado muito mal. Este é um exemplo real, dado por uma das professoras do Instituto Mediare, em uma das aulas da formação em Mediação de Conflitos que acabei de concluir.

Sempre intuí que levava jeito para mediar conflitos apesar de não gostar de estar no meio de um. Talvez justamente por isso é que desenvolvi habilidades “apaziguadoras”. Mas foi nesta formação que pude ampliar o meu olhar sobre muitas questões e terminar de me apaixonar pelo que antes eu apenas intuía...

A primeira questão importante que tomei conhecimento é a de que conflitos não precisam ser necessariamente ruins. Podemos olhar para eles como oportunidades para pontos de inflexão e mudança. Claro que não é sempre que acordamos dispostos a enfrentar conflitos em busca de oportunidades, mas olhá-los como um fenômeno nos ajuda a lidar com a situação e a manter o distanciamento intelectual e emocional, tão necessários.

Outra questão que nos ajuda a lidar com os conflitos é o fato de não atribuir o mal comportamento à pessoa e sim à situação ou ao problema. Ela está gritando com você e usando palavras duras que parecem ter sido escolhidas somente para te atingir? Pare e pense por um segundo o que esta pessoa está tentando defender.

 

Conflitos surgem quando necessidades

não são atendidas ou quando

identidades não são reconhecidas.

 

Também não ajuda fazer uma caça aos culpados. Sendo muito objetiva, a situação não se resolverá por alguém ter ganho o status de “culpado”. Pode (ou não) apaziguar o “justiceiro” que mora em cada um de nós, mas certamente alimentará o clima de adversidade e antipatia, prejudicando qualquer possibilidade de solução. Lembra o ditado “Não chore sobre o leite derramado”? Pois é sobre isto que a Mediação de Conflitos fala... sobre termos uma visão prospectiva da situação, olharmos à frente com o objetivo de criarmos o maior número possível de alternativas que podem virar soluções que atendam às necessidades dos envolvidos.

O exercício de alternativas é possível quando as pessoas que estão envolvidas num conflito aceitam quatro convites básicos que as colocam em condições de atuarem sob uma nova perspectiva:

O primeiro deles é o convite de reconhecermos o princípio da interdependência, ou seja, nós precisamos um do outro para encontrar um caminho. Em outras palavras é quando você reflete “Se eu pudesse resolver esta situação sozinho, eu estaria aqui?”.

O segundo deles diz respeito a refletirmos sobre a nossa auto implicação nesta situação. Em que medida eu sou responsável por isto? Que comportamentos meus ajudaram a chegarmos até aqui? O que eu posso fazer para manter a situação como está e, em igual medida, o que eu posso fazer para mudá-la? Ao reconhecermos tanto a nossa implicação quanto a do outro em uma determinada situação poderemos evoluir do “Eu” ou “Você” para o “Nós”.

O terceiro convite é para cada um estar aberto a repensar suas ideias iniciais. Resolver conflitos não é convencer o outro de que a sua ideia é a melhor. Talvez seja justamente por isto que vocês chegaram a esta situação. A solução se torna uma possibilidade quando nós nos movimentamos, um em direção ao universo do outro, aprimorando nossa escuta para compreender o que o outro está falando, o que não significa concordarmos com ele. Assim, abrimos espaço para flexibilizarmos nossas posições, mantendo nossos valores preservados.

O último convite é o de que sejamos capazes de assumir uma postura colaborativa com o processo de resolução do conflito. É abrir espaço para a nossa capacidade de co-criar e pensar em soluções que levem em conta os interesses de todos.

Fico pensando que resolver conflitos tem tudo a ver com olharmos para nós, antes de olharmos para o outro. De darmos o primeiro passo em direção a construirmos um ambiente de confiança e colaboração. De estarmos dispostos a lidar com as diferenças que existem em nós, além das que existem no outro. E que fazer o exercício de buscar alternativas nos ajuda a olhar o mundo com mais possibilidades e nos move em direção ao futuro.

Mas você deve estar se perguntando o que aconteceu com o gato Felini, sua dona, aquelas crianças e suas mães... Não está? Um time de mediadores voluntários ajudou esta comunidade a lidar com este conflito de outra forma. Para começar, todos da comunidade foram convidados a participar do processo de mediação, que se desenrolou em alguns encontros. Vizinhos, associação de moradores, o subprefeito, além, claro, dos meninos, das mães e da “bruxa da rua”. Na mediação comunitária, qualquer um que esteja envolvido no contexto e queira participar é bem-vindo.

Depois, os mediadores explicaram como o processo iria acontecer e quais deveriam ser os combinados e as responsabilidades de cada um no processo de mediação. Transparência e ética são os fios condutores.

Na mediação comunitária, as histórias e as relações ganham mais importância do que o fato em si. Foi neste ambiente de abertura e confiança que todos souberam que as crianças que jogavam bola na rua, queriam mesmo era poder ter um campinho para brincarem e organizarem seus campeonatos. A senhora, até então apelidada de “bruxa da rua”, era uma professora de artes que deixara de lecionar após uma forte depressão provocada pela morte de seu filho. As mães estavam desesperadas por não estarem trabalhando e este era o assunto que as ocupava o dia todo.

As soluções não surgiram da noite para o dia, mas foram fruto do processo e vieram no momento certo e à medida que cada um se abriu para os convites que falamos acima. O subprefeito, com ajuda dos vizinhos e da associação dos moradores do bairro, fez de um terreno da Prefeitura, antes abandonado e cheio de mato, um campinho para a prática do futebol e outros esportes. A senhora, comovida com a história daquelas mães, se ofereceu para ensinar-lhes um novo ofício e assim, as mães começaram a produzir suas peças de artesanato e a vender nas proximidades. E o gato Felini, bem, este se recuperou do machucado e seguiu sua rotina sem maiores percalços.

Ao final, realmente, um conflito não é necessariamente algo ruim. É o tal ponto de inflexão ou de mudança, neste caso, para melhor.

Escrito por Valeska Scartezini, coach e facilitadora de diálogos, formada em Mediação de Conflitos pelo Instituto Mediare.

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