A Comunicação Não Violenta (CNV) é uma pesquisa criada pelo psicólogo americano Dr. Marshall B. Rosenberg há mais de 50 anos. Desde então, essa abordagem tem sido usada em todo o mundo, em diferentes organizações e contextos, com o fim principal de apoiar a resolução de conflitos e a conexão entre as pessoas.
O nome vem de uma das muitas inspirações de Marshall, a não violência de Gandhi e seus princípios, que apoiaram seus discípulos em sua luta pela paz. Esses princípios usados por Gandhi são a inspiração- base da CNV e criam a consciência necessária para abraçarmos as práticas no dia a dia. A conexão com os princípios de não violência são um primeiro grande passo para internalizar a abordagem.
O maior princípio, em sânscrito é o Ahimsa. A palavra deriva do radical hims, “bater, golpear” e himsa significa “dano”; a-himsa significa o oposto, isto é, “ausência de dano”, “não violência”. Como disse Marshall, “é nosso estado compassivo quando a não violência houver se afastado de nosso coração”.
Desse princípio, derivam-se outros. Gandhi brincou com as palavras juntando-as e criando novos princípios. Um deles é Sarvodaya - o radical Sarva significa “todos” e Udaya significa “bem comum”: seria a busca pelo bem-estar de todos. Ou seja, todas as ações são tomadas com o propósito de contribuir voluntariamente para o bem-estar dos outros e de nós mesmos. Alinhada a esse princípio, a CNV entende que nossa natureza deseja servir e enriquecer a vida uns dos outros.
A violência surge, então, pela maneira como fomos educados, que nos desconecta da nossa natureza compassiva, por usar uma linguagem que desumaniza as pessoas e as torna objetos e rótulos. Usamos palavras estáticas como certa, errada, boas, más, egoístas, altruístas. A CNV foca em estarmos mais perto dessa natureza compassiva e em transformarmos essa linguagem por meio de uma integração na comunicação, relembrando como podemos nos conectar e contribuir para o bem-estar uns dos outros. Por meio de uma linguagem dinâmica, abandonando uma linguagem que diagnostica e julga.
Se, por exemplo, considero o outro egoísta, coloco-o em uma caixinha e me afasto dele, pior, me afasto de mim mesmo, de uma oportunidade de aprender mais sobre mim. Agora, se penso que o outro é egoísta e me conecto com o que está embasando esse pensamento, como seria esse diálogo interno? Algo como: “Percebo que, quando o chamo de egoísta, penso o quanto ele me enganou, não foi sincero, não se importou, não me ajudou.”
A CNV nos convida a sairmos desse processo automático, em que foco em pensamentos repletos de julgamentos. A mudança surge quando foco no que realmente aconteceu.
“Um amigo combinou de me ajudar hoje pela manhã em minha mudança. São 15hs e ele não chegou”. Pura observação. E se agora me conecto com meu corpo, com o que sinto? Sinto em meu corpo tristeza, decepção, frustração. O que era importante para mim nesse fato que não ocorreu? Talvez eu precisasse de consideração, apoio, honestidade, transparência? Nesse movimento de sair dos rótulos e olhar para si, posso descobrir muito sobre mim. Um processo profundo de autoconhecimento que me conecta com meus valores, nesse caso, consideração, honestidade, transparência, apoio. E nesse momento, em vez de focar na minha interpretação da si atuação, olho para dentro de mim para verificar o que está vivo, me conectando com o que mais prezo na vida. É uma mudança de perspectiva. Então posso conversar com o outro em um nível diferente de conexão, a partir do que é importante para mim, do que preciso (honestidade, apoio, transparência, consideração), e não um diálogo a partir de julgamentos (“seu egoísta”, “seu preguiçoso”, “você nunca faz isso certo”).
E existe outro princípio de não violência que nos dá base para fazer essa mudança de foco, essa transição de olhar. Esse princípio chama-se Swaraj, com seu radical em sânscrito Swa, que significa “Eu” e Raj que significa “Regra”, “Governança”, sendo traduzido como “Eu Rei de Mim Mesmo”. Eu sou responsável pela minha ação, eu tenho autonomia de ação. Na prática, na CNV, acreditamos que o comportamento do outro não é a causa dos nossos sentimentos. Acreditamos que os sentimentos são uma parte natural da vida, do corpo. Eles nos dão um feedback do que está acontecendo interiormente. E com essa consciência, consigo descobrir mais sobre mim e sobre o outro. Quando conecto com meu corpo e percebo uma tensão nos ombros, por exemplo, posso ir ainda mais fundo e conectar com meu sentir, consigo perceber que há uma preocupação ou uma frustração ou um nervosismo. E esses sentimentos nos trazem uma mensagem especial.
“Nossos sentimentos são nossos caminhos mais genuínos para o conhecimento.”
Audrei Lorde
E essa mensagem que o sentimento nos revela sobre nós mesmo, na CNV chamamos de Necessidades. E elas sim, e não os outros, são a causa dos meus sentimentos. E a pergunta que posso fazer é: “Se estou preocupado ou irritado ou triste, qual necessidade minha não está sendo atendida?” Me conecto com meu corpo, meu sentir e com o que mais importa na vida para mim, minhas necessidades. E elas são universais e compartilhadas por todos os seres humanos, como paz, amor, comunhão, consideração, reconhecimento, pertencimento, leveza, autenticidade. E falar com o outro a partir disso tudo que está vivo em mim aumenta enormemente a probabilidade de escuta e de conexão. E, como coaches, sabemos o quanto as perguntas são importantes para o processo e na CNV não é diferente - temos algumas perguntas que podem nos direcionar nesse caminho: “O que está vivo em mim?”, “O que está vivo em você?” É essa conexão que a CNV deseja apoiar. O que está vivo em mim e o que está vivo em você. Percorrendo o caminho desses princípios poderemos descobrir. E mais, poderemos nos conectar com o que está vivo nos outros, mesmo que eles não nos digam. Nesse olhar para o outro, a empatia exerce um papel fundamental.
Os estudos e trabalhos de Marshall, com o também psicólogo Carl Rogers, desenvolveram um papel central na CNV, já que Marshall percebeu o quanto a empatia explorada por Rogers na Abordagem Centrada na Pessoa – ACP - trazia cura. A ideia de Marshall então, foi trazer elementos da empatia para a comunicação, com o intuito de aumentar a qualidade da conexão nas relações. Na CNV, a empatia está muito conectada com a presença. Não é ter simplesmente compaixão do outro. É estar com o outro. Tem a ver com ouvir genuíno. Gosto muito da frase do Adam Kahane, que diz: “O que impede o ouvir é o já saber”. Nisso, a empatia faz morada. Nesse não saber, nessa curiosidade genuína pelo outro. Acreditar que o outro não é um ser estático, O Egoísta, O Elegante, O Fofoqueiro, O Inteligente, O Puxa-saco, O Lerdo, mas sim um ser humano com uma potencialidade incrível dentro de si. Com essa consciência, ao ouvir o outro, você remove todos os ruídos que bloqueiam esse fluxo entre vocês. E esses ruídos, na maioria das vezes, são todos os pensamentos do que eu acho que sei sobre você. Tudo o que eu sei sobre você, na maioria das vezes é o que me atrapalha a ouvir de verdade e a me conectar com empatia. O que a CNV busca é um ouvir puro, com foco no presente, no que está acontecendo no aqui e agora. O foco então muda - dos meus pensamentos e interpretações para o que está acontecendo exatamente agora, na minha frente. E isso me recorda do nosso compromisso como coaches, dessa escuta profunda que oferecemos aos coachees, focando na agenda deles e não na nossa, no que é a verdade deles e não a nossa, junto com o movimento de acreditar que essa pessoa está em constante mudança e que a cada sessão tem um potencial incrível de se reinventar por si só, uma curiosidade pelo outro, como diria Thich Nhat Hanh: “Cada pessoa é um mundo a explorar”.
Assim, diante do outro, posso ouvir o invisível. Quando ele me diz algo com violência, um julgamento por exemplo, o que está vivo nele? Qual o sentimento que aí está e qual necessidade precisa ser atendida? E novamente, posso falar a partir desse lugar, sem julgamento, sem intepretações, mas dando um presente para o outro, o que estou percebendo que está vivo nele. Como disse Marshall: “A agressividade é uma expressão trágica de uma necessidade não atendida”. O que tenho visto é que na maioria das vezes, as pessoas não se dão conta disso e agem com essa violência. Podemos então, com o olhar da CNV, apoiá-los para que eles também se conectem com o que está vivo neles. Diante disso, reitero que a CNV é uma maneira de expressar honesta e amorosamente o que está vivo em nós e o que estamos enxergando que possa estar vivo nos outros. Para um processo de aprendizagem, isso pode ser feito tendo percepção desses 3 elementos: Observação sem interpretação, Consciência dos nossos Sentimentos e Conexão com nossas Necessidades. No entanto, ainda existe um elemento que nos apoiará nesse processo. É a forma como pedimos.
“Perguntar é o começo de receber.”
Jim Rohn
Depois de percorrer o caminho externo da Observação, percorro um caminho interno rumo aos meus Sentimentos e depois disso percorro um caminho mais interno ainda rumo às minhas Necessidades. A partir desse ponto, o caminho volta a ser externo e se dirige para o outro. Está na hora de fazer uma pergunta. É o momento de Pedir o que preciso para enriquecer minha vida. A CNV sugere que esse pedido seja claro, específico e positivo. Que lhe diga com clareza, em ações, o que quero que você faça. A ideia é expressar o que queremos em vez do que não queremos. E ao fazer esse pedido, preciso estar disposto a receber um Não. Porque, se assim fosse, o pedido seria apenas uma demanda, e não um pedido. As pessoas precisam saber que podem discordar e serem compreendidas, que têm escolhas. Com isso, se eu receber o Não, surge uma oportunidade para ouvir o invisível e perceber quais sentimentos e necessidades estão por trás desse Não e, desse lugar, me conectar e dialogar com a outra pessoa.
A CNV é uma pesquisa, é uma abordagem, mas também é um caminho que podemos escolher percorrer diariamente com consciência em cada uma das nossas ações. Como coaches, acredito no importante papel que temos - apoiar o coachee a focar no que está vivo nele - e assim, aprender, se conectar e a partir disso viver muito mais plenamente e em autenticidade, com ele e com os outros.
*artigo publicado na revista Coaching Brasil #61
Referências Bibliográficas:
ROSENBERG, M. Comunicação Não-Violenta. Editora Agora, 2003.
ROSENBERG, M. Speak Peace in a World of Conflict, PuddleDancer Press, 2005.